Miranda finalmente voltava para Lérida, no reino de Aragão, sua terra natal. Saíra de lá havia mais ou menos cinco anos, não levara mais que a roupa do corpo e um cavalo roubado de seu senhor. Passara esse tempo em Foix, território francês, onde, atendendo pelo nome de Lenóire, conseguiu subsistir, montar uma pequena loja e agregar recursos suficientes para negociar sua família com o latifundiário que os enclausurara.
Lérida mudou muito nesses anos. Cresceu à margem dos recursos da capital, Zaragoza, mas ainda conseguia superar a miséria aos poucos. As ruas estavam limpas dos seres decrépitos que a povoavam e mendigavam, talvez algo mais que dinheiro, durante muito tempo até definhar. Apesar de ainda haver resquícios, o cheiro forte de fossa parecia nunca ter existido e o comércio havia ressurgido, como se os atentados mouros fossem uma mera lembrança de um passado distante.
A Casa Grande, monumento do latifúndio que exprimia sua riqueza, era toda branca, de mármore, em arquitetura clássica. Aquelas colunas coríntias de uns seis metros de altura, perfeitamente encaixadas, poderiam sobreviver mesmo à ira dos deuses. Mesmo a entrada era um portal, o que aumentava a similaridade com um templo grego, mas ao fundo, uma porta de madeira de mógno podia ser vista.
Miranda se apresentou aos empregados como Lenóire Juvou e requeriu uma conversa com o Señor Ramirez Alcantara, torcendo para que ele não lembrasse de seu rosto.
- Ora vejam. A que deve este humílde à tão inusitada visita de uma señorita?
- Muito lisonjeiro de vossa parte, monsieur Alcantara.
- Mas quê? És de França? Há muito não ouço este sotaque, apesar de que a fronteira fica a apenas meio dia, a cavalo.
- Monsieur, vim desde Foix, pretendo instalar-me nesta cidade e iniciar um negócio. Minha família é dona de uma famosa bombonière. Por acaso estaria interessado em negociar alguns servos? Preciso de ajuda para começar os preparativos.
- Mas a señorita certamente já dispõe de funcionários de confiança, estaria eu errado?
- De certo modo. A família é muito tradicional. Em novos negócios, tudo deve começar do zero. Até mesmo as relações de trabalho.
- Ah. De fato um modo interessante de se pensar. Mas por quê, se me permite o atrevimento, enviaram a senhorita e não um homem para lidar com este encargo?
- Aragão está certamente atrasado em relação à França. Atualmente as famílias, como a minha, que não têm mais homens para continuar seu legado, optam pelas mulheres. Afinal, as constantes cruzadas ceifam muito mais que os mouros que se apinham em Constantinopla.
- Se não vejamos, uma mulher que sabe da política também! Jamais entenderei o funcionamento moderno dos caros de França. Pois bem, acredito que possa negociar alguns servos convosco.
- Seria muito bom.
- Volte à noite, é tempo para se acomodar, indico que procure a nossa hospedaria.
- Ah, muito gentil, monsieur, mas a família Juvou é precavida, já temos nossa terra aqui há meses.
- Então aquela casa nova no centro comercial...
- Sim, é nossa nova bombonière.
- Esplendido. Vou reunir os servos disponíveis, volte às sete e jante conosco. Será um prazer recebê-la de modo mais agradável.
- O prazer será meu. E desculpe a rudeza em aparecer sem aviso. Não conheço a cidade, ainda sou uma pobre moça.
Toda essa conversa enchia de asco a garganta de Miranda. Aquele homem era perverso e abusava de suas vassalas, ela sabia muito bem disso. Se fazer passar por uma menina frágil era sua melhor arma. Ela, de fato, estava na flor da idade. Em seus dezenove anos ainda tinha muito pela frente. Talvez vivesse até os cinquenta, se tivesse sorte, seu estilo de vida era muito melhor que antes.
O século XIV com certeza não era uma boa época de se viver. A peste, a fome, sujeira e guerra assolavam a tudo e a todos. Não importava se eram nobres ou vassalos, era como se Deus tivesse aberto as portas do inferno, de onde saíram os quatro cavaleiros do apocalipse para fazer jus ao fim dos tempos. Era um tempo de desespero, mas não havia muito que chorar e nem muito que se fazer, além de esperar pela morte.
Miranda há muito esquecera Deus, sabia ser convincente o suficiente para não ser queimada na fogueira como bruxa, mas era tudo mentira. Ao abandonar aquele costume provinciano – como ela aprendera com os críticos franceses sobre tudo o que eles menosprezavam –, se viu prosperando na vida, enquanto as beatas poderiam viver para sempre perdidas nos dízimos e fofocas, afogando a dor da viuvez, mas nunca sairiam da fossa em que chafurdavam até o pescoço.
Lérida ficava mais ao sul que Foix e era ligeiramente mais quente. A noite também chegava mais tarde, o que às sete horas refletia um belo pôr-do-sol através das colinas ibéricas. Por entre os raios de sol que tricotavam as colunas gregas, a porta de mogno assumia uma coloração avermelhada e parecia um coração.
Era pena que o homem que morava ali fosse um nobre tão repulsivo. Ramirez herdara o título do pai, este sim era um nobre de verdade, Sir Corazón del Draco, o visconde de Alcantara, morreu nas cruzadas lutando em nome daquele Deus ridículo – pensava Miranda – deixou a mulher viúva e um filho bebê. A madame Alcantara se apegou tanto à religião que seus jejuns a mataram e o filho sobreviveu mimado pelas mucamas e se tornou esse homem nojento. Avarento, mulherengo e covarde. A tríade viral que guiava os nobres do pós-guerra. Agora que havia um rei e os feudos estavam se desfazendo, o título de nobreza não era mais que um título.
- Bon noite, monsieur Alcantara.
- Buenas, señorita Juvou. Seja bem vinda. Vamos jantar, lhe apresentarei a criadagem depois.
- Esta sopa de batatas está realmente deliciosa. C’est magnific.
- Fico feliz que esteja a teu agrado. Mas diga-me, algo me intriga. Como sabia meu nome se acabara de chegar à cidade.
Miranda sabia que estava encrencada, mas preferiu sair com um gracejo.
- Ora, como disse, a família Juvou é precavida. Nos informamos das boas almas da região.
- Hmm... Entendo...
O resto do jantar se passou de forma silenciosamente constrangedora, então os dois se levantaram e seguiram à casa menor que ficava nos fundos da propriedade. Já passava das nove horas, então eles deviam estar ali, na casa comunal da vassalagem.
Ao entrarem, um cheiro repulsivo e roto de comida decomposta, fezes e sujeira, somado ao barulho incessante dos insetos, fez com que os visitantes se desorientassem, apenas tempo suficiente para uma velha serva esconder seu espanto.
- Señores, esta é a señorita Juvou, é nova na cidade e gostaria de uma ajuda em sua bombonière. Para tanto, duas damas de aqui serão escolhidas para auxiliá-la.
O anúncio de fato incomodou Miranda, pois sabia que salvar mãe e pai era impossível, neste caso, optou por levar sua mãe e a melhor amiga dos tempos de servidão: Sabrina.
- Señorita, entendo a escolha por Sabrina, mas esta outra serva já está um tanto idosa, já passa dos trinta, não achas melhor...
- Está bem por moir. A experiência é o melhor atributo a uma serva de cozinha.
- Compreendo. Pois bem, vou arrumar os papéis para assinarmos amanhã e lhe informarei a quantia.
Uma vez que tudo fora acertado, Miranda continuou a agir sob esse disfarce, mesmo enquanto trabalhava em sua bombonière, ladeada pela mãe e amiga que não ousavam fazer perguntas para a nova senhora. Com o tempo, um boato foi surgindo na cidade, pessoas estavam desaparecendo misteriosamente, mas a nova loja estava atraindo mais turistas das redondezas do que as notícias poderiam espantar.
A cada mês, um homem e uma mulher, sempre nesta ordem, sumiam para sempre e não se encontravam vestígios. O homem geralmente era um servo, e a mulher, uma dama. Miranda sabia que esse era o pretexto que precisava e finalmente contou toda a verdade às duas servas que choraram de felicidade.
Quando os incidentes completaram o terceiro mês, os três voltaram à propriedade dos Alcantara sob o pretexto de visitar os outros servos, devido à preocupação de que algum deles tivesse sumido. Neste momento, Miranda deveria distrair o latifundiário, enquanto as outras duas armavam um plano de fuga com seu pai.
Aquele quarto mês estava tranqüilo, ainda não havia nenhuma vitima, o Sr. Alcantara comentava alegremente, enquanto conduzia Miranda para os fundos da casa, lugar onde ela nunca fora antes. Os dois entraram em um cômodo grande, poderia funcionar como um salão de baile, afinal, o pé direito alto ali proporcionava uma acústica fantástica, mas não tinha janelas e as portas pareciam bem vedadas, montagem típica para abafar o som.
Quando o anfitrião fechou as portas atrás de si e ambos ficaram no breu que durou até o momento em que ele acendeu algumas velas, um cheiro estranho começou a incomodar as narinas da moça. Ele a conduziu para o centro do salão e começou a falar:
- Sabe o que eu mais detesto? Pessoas que acham que dinheiro e nobreza se conquistam com o esforço. Contradizem a lei de Deus, afinal, já nascemos nobres e ricos, ou pobres e servis.
A moça se restringiu a ficar calada.
- Você sabia que todas as damas que morreram eram viúvas-negras? Elas se casaram com seus senhores, neste frenesi de miscigenação que está acontecendo, conquistaram seu dinheiro e suas terras e depois os mataram sem o menor remorso. Sabias disto?
A rudeza do homem começara a incomodá-la, mas ela preferiu ficar resoluta por mais um tempo. Um homem entrou pela porta imediatamente oposta e a fechou, caminhou até a luz das velas, de modo que ela podia encarar os dois homens, mas seu rosto estava obscurecido pela sala.
- Me chamaste, señor?
- Si, mira esta chica. Reconhece?
Miranda quase fugiu da luz, como um demônio, aquele homem que estava à sua frente era seu pai, ela estava encrencada como nunca.
- Si, señor, é a señorita Juvou.
O latifundiário desferiu uma bofetada contra o rosto do homem que cambaleou e caiu de fraqueza.
- Não brinque comigo, seu torpe!
Algo reluziu na direção de Ramirez, mas nada era visível naquela penumbra, até que ele desequilibrou o candelabro e derrubou uma vela, que fez algo viscoso no chão pegar fogo. Era algum tipo de óleo fétido, as chamas percorriam-no como uma trilha e caminhavam em direção a alguma coisa empilhada. Os olhos dos espectadores se encheram de terror, o do anfitrião se encheu de ódio, e aqueles seis pares de olhos vislumbravam seis corpos sem vida, lambidos pelas chamas que agora estavam frenéticas e fediam como nunca.
- Assassino!
- Fugitiva!
- Filha!
Os três gritaram, a faca na mão de Ramirez se precipitou para Miranda, mas o pai não deixaria que algo acontecesse à sua única filha. Com um movimento rápido, aproveitou que já estava no chão e bateu o calcanhar com toda força na barriga do assassino. O frágil e pomposo nobre foi atirado para trás com violência e caiu no chão, coincidentemente sobre uma porção daquele óleo que escorrera dos corpos. Esta foi a deixa para Miranda arremessar uma das velas caídas em sua direção e vê-lo fritar como o porco ganancioso que era.
Naquela noite, quatro pessoas saíram da cidade e a nova Bonbonière fora abandonada. Os rumores diziam que aqueles doces eram feitos de gente, por isso os desaparecimentos cessaram. Mas, uma vez na França, falácias provincianas como esta jamais iriam vingar.