24 de abr. de 2009

Dragão de Ferro

Pólvora. Sangue. Lama.

 

A guerra não tem nada da poesia e fantasia que por tantos anos povoaram a minha mente, contos para assegurar as tolas crianças, até então sem qualquer conhecimento da realidade da morte, de que seus pais voltariam são e salvos, consagrados heróis, como se todos fossem cavaleiros montados no corcel branco da justiça. Por mais insignificante fosse o soldado. Provavelmente fui um dos poucos agraciados, pois tive do meu lado um pai durante todo meu amadurecimento como homem, ele voltou são e salvo da guerra, dispensado por razões nem um pouco heróicas que não me cabe citar no momento. Agora minhas memórias são atormentadas pelos rostos de amigos e inimigos mortos, muitos os quais fui o responsável pela paz que finalmente encontraram em suas faces agonizantes, fazendo o trabalho de um anjo da morte.

 

Temo que meus filhos não terão a mesma sorte que tive na infância, posso apenas imaginar como eles serão quando crescidos, rezar para que enfrentem de cabeça erguida as dificuldades que enfrentarão, principalmente agora que não estarei por perto. Talvez um bom homem tome conta da minha família, como eu faria, ou até mesmo melhor.

 

De todos os momentos que me marcaram na guerra, um em especial deve ser citado antes que eu continue esta carta, certo soldado inimigo que tive o desprazer de “ajudar”. Seu rosto me lembrava do meu pequeno James, ou pelo menos o que restava do rosto, não devia ter mais do que 16 anos, um tiro de espingarda a queima roupa tinha rasgado a parte inferior da sua face, deixando a mandíbula deslocada, pendendo pelos poucos músculos que lhe restava. Ainda me lembro da cena, ele se engasgando no próprio sangue que jorrava incessante da ferida, se não fosse sufocado morreria pela perda de sangue. Durante alguns segundos tentei imaginar quem seria capaz de fazer algo do tipo com um jovem, ou melhor, com qualquer outra pessoa ... Qual dos meus companheiros de armas teria feito aquilo ?

 

O bondoso John ? O corajoso Ryan ? Ou o medroso Emmett ?

 

A guerra realmente trás a torna o pior no ser humano... Dei um tiro no que restava do seu rosto, rezando que fosse o suficiente para por um fim na sua dor, e que ele encontrasse paz no outro mundo.

 

No inicio desta guerra me parecia que seriamos facilmente vitoriosos, cada batalha era vencida com nenhuma perda significativa de nosso contingente. Mas agora...

 

Ninguém nós preparou para enfrentar dragões de ferro...

 

Fui um dos únicos sobreviventes do primeiro embate com a fera metálica, estávamos tão confiantes na vitória, mas desconfio que não matamos um inimigo sequer naquela noite. Apenas corremos como tolos para o abatedouro.

 

Eu corria na retaguarda, por experiência usava os mais afoitos e descuidados como escudo para o primeiro embate, quando fomos tomados por um repentino rugido ensurdecedor. Antes que percebesse que os homens a minha frente caiam como frutas maduras, espalhando o seu “suco” de forma asquerosa pela grama, e me jogasse no chão para me proteger dos próximos cuspes de fogo, pude ver de relance o grande monstro com que eles nós atacaram. Corpo todo revestido do que parecia ser metal, da altura de um homem, provavelmente um pouco maior, e do comprimento de 6 ou mais dos mais fortes soldados. Sua boca tinha uma serie de buracos de onde ele cuspia seus projeteis de fogo, que são capazes de rasgar a pele como manteiga, fui atingido de raspão no braço e agora me falta um naco de carne, numa das feridas mais limpas que eu já vi. Tive a impressão de ver um soldado ou mais operando o dragão metálico, mas depois daquilo nada mais fiz a não ser me manter deitado, apavorado com a cena que se passou rapidamente diante dos meus olhos.

 

Depois de atingido me joguei instintivamente no chão, e por isso consegue me proteger do ataque incessante, que naquele momento atingia todos aqueles que corriam atrás de mim e ainda estavam de pé. O que antes parecia ter durado questão de segundos, agora se estendia por horas, enquanto eu me mantinha deitado, rezando por um milagre, pela felicidade da minha família. Infelizmente não fui capaz de ver nada a mais, o medo não deixava que me arriscasse a ver o que ainda acontecia no campo de batalha. Só percebi que tudo tinha terminado quando fui rendido pelo inimigo, junto com alguns outros poucos sobreviventes.

 

Ao saber que eu era letrado, prontamente pediram que eu escrevesse o que conseguia me lembrar da batalha nesta carta, prometendo poupar não só a mim mas como os outros sobreviventes. Temo que só precisem desta carta e um oficial de maior patente, que suspeito também deve estar escrevendo sua própria versão do acontecido forçado por eles. Isso bastara para espalhar o medo que querem, mas se um dia esta carta chegar em mãos competentes peço para que digam a minha família que eu sinto muito por não poder estar lá nos próximos anos, por terem me perdido numa guerra que agora me parece tão sem sentido e estúpida. Eu rezo para que vocês sejam felizes, eu velarei pela sua segurança do outro mundo.

 

Esse dragão de ferro do qual eles estão tão orgulhosos, parece ser a maquina de guerra perfeita ...


Ass.: J.J. Anderson

10 de abr. de 2009

Orgulho e Preconceito

Miranda finalmente voltava para Lérida, no reino de Aragão, sua terra natal. Saíra de lá havia mais ou menos cinco anos, não levara mais que a roupa do corpo e um cavalo roubado de seu senhor. Passara esse tempo em Foix, território francês, onde, atendendo pelo nome de Lenóire, conseguiu subsistir, montar uma pequena loja e agregar recursos suficientes para negociar sua família com o latifundiário que os enclausurara.
Lérida mudou muito nesses anos. Cresceu à margem dos recursos da capital, Zaragoza, mas ainda conseguia superar a miséria aos poucos. As ruas estavam limpas dos seres decrépitos que a povoavam e mendigavam, talvez algo mais que dinheiro, durante muito tempo até definhar. Apesar de ainda haver resquícios, o cheiro forte de fossa parecia nunca ter existido e o comércio havia ressurgido, como se os atentados mouros fossem uma mera lembrança de um passado distante.
A Casa Grande, monumento do latifúndio que exprimia sua riqueza, era toda branca, de mármore, em arquitetura clássica. Aquelas colunas coríntias de uns seis metros de altura, perfeitamente encaixadas, poderiam sobreviver mesmo à ira dos deuses. Mesmo a entrada era um portal, o que aumentava a similaridade com um templo grego, mas ao fundo, uma porta de madeira de mógno podia ser vista.
Miranda se apresentou aos empregados como Lenóire Juvou e requeriu uma conversa com o Señor Ramirez Alcantara, torcendo para que ele não lembrasse de seu rosto.
- Ora vejam. A que deve este humílde à tão inusitada visita de uma señorita?
- Muito lisonjeiro de vossa parte, monsieur Alcantara.
- Mas quê? És de França? Há muito não ouço este sotaque, apesar de que a fronteira fica a apenas meio dia, a cavalo.
- Monsieur, vim desde Foix, pretendo instalar-me nesta cidade e iniciar um negócio. Minha família é dona de uma famosa bombonière. Por acaso estaria interessado em negociar alguns servos? Preciso de ajuda para começar os preparativos.
- Mas a señorita certamente já dispõe de funcionários de confiança, estaria eu errado?
- De certo modo. A família é muito tradicional. Em novos negócios, tudo deve começar do zero. Até mesmo as relações de trabalho.
- Ah. De fato um modo interessante de se pensar. Mas por quê, se me permite o atrevimento, enviaram a senhorita e não um homem para lidar com este encargo?
- Aragão está certamente atrasado em relação à França. Atualmente as famílias, como a minha, que não têm mais homens para continuar seu legado, optam pelas mulheres. Afinal, as constantes cruzadas ceifam muito mais que os mouros que se apinham em Constantinopla.
- Se não vejamos, uma mulher que sabe da política também! Jamais entenderei o funcionamento moderno dos caros de França. Pois bem, acredito que possa negociar alguns servos convosco.
- Seria muito bom.
- Volte à noite, é tempo para se acomodar, indico que procure a nossa hospedaria.
- Ah, muito gentil, monsieur, mas a família Juvou é precavida, já temos nossa terra aqui há meses.
- Então aquela casa nova no centro comercial...
- Sim, é nossa nova bombonière.
- Esplendido. Vou reunir os servos disponíveis, volte às sete e jante conosco. Será um prazer recebê-la de modo mais agradável.
- O prazer será meu. E desculpe a rudeza em aparecer sem aviso. Não conheço a cidade, ainda sou uma pobre moça.
Toda essa conversa enchia de asco a garganta de Miranda. Aquele homem era perverso e abusava de suas vassalas, ela sabia muito bem disso. Se fazer passar por uma menina frágil era sua melhor arma. Ela, de fato, estava na flor da idade. Em seus dezenove anos ainda tinha muito pela frente. Talvez vivesse até os cinquenta, se tivesse sorte, seu estilo de vida era muito melhor que antes.
O século XIV com certeza não era uma boa época de se viver. A peste, a fome, sujeira e guerra assolavam a tudo e a todos. Não importava se eram nobres ou vassalos, era como se Deus tivesse aberto as portas do inferno, de onde saíram os quatro cavaleiros do apocalipse para fazer jus ao fim dos tempos. Era um tempo de desespero, mas não havia muito que chorar e nem muito que se fazer, além de esperar pela morte.
Miranda há muito esquecera Deus, sabia ser convincente o suficiente para não ser queimada na fogueira como bruxa, mas era tudo mentira. Ao abandonar aquele costume provinciano – como ela aprendera com os críticos franceses sobre tudo o que eles menosprezavam –, se viu prosperando na vida, enquanto as beatas poderiam viver para sempre perdidas nos dízimos e fofocas, afogando a dor da viuvez, mas nunca sairiam da fossa em que chafurdavam até o pescoço.
Lérida ficava mais ao sul que Foix e era ligeiramente mais quente. A noite também chegava mais tarde, o que às sete horas refletia um belo pôr-do-sol através das colinas ibéricas. Por entre os raios de sol que tricotavam as colunas gregas, a porta de mogno assumia uma coloração avermelhada e parecia um coração.
Era pena que o homem que morava ali fosse um nobre tão repulsivo. Ramirez herdara o título do pai, este sim era um nobre de verdade, Sir Corazón del Draco, o visconde de Alcantara, morreu nas cruzadas lutando em nome daquele Deus ridículo – pensava Miranda – deixou a mulher viúva e um filho bebê. A madame Alcantara se apegou tanto à religião que seus jejuns a mataram e o filho sobreviveu mimado pelas mucamas e se tornou esse homem nojento. Avarento, mulherengo e covarde. A tríade viral que guiava os nobres do pós-guerra. Agora que havia um rei e os feudos estavam se desfazendo, o título de nobreza não era mais que um título.
- Bon noite, monsieur Alcantara.
- Buenas, señorita Juvou. Seja bem vinda. Vamos jantar, lhe apresentarei a criadagem depois.
- Esta sopa de batatas está realmente deliciosa. C’est magnific.
- Fico feliz que esteja a teu agrado. Mas diga-me, algo me intriga. Como sabia meu nome se acabara de chegar à cidade.
Miranda sabia que estava encrencada, mas preferiu sair com um gracejo.
- Ora, como disse, a família Juvou é precavida. Nos informamos das boas almas da região.
- Hmm... Entendo...
O resto do jantar se passou de forma silenciosamente constrangedora, então os dois se levantaram e seguiram à casa menor que ficava nos fundos da propriedade. Já passava das nove horas, então eles deviam estar ali, na casa comunal da vassalagem.
Ao entrarem, um cheiro repulsivo e roto de comida decomposta, fezes e sujeira, somado ao barulho incessante dos insetos, fez com que os visitantes se desorientassem, apenas tempo suficiente para uma velha serva esconder seu espanto.
- Señores, esta é a señorita Juvou, é nova na cidade e gostaria de uma ajuda em sua bombonière. Para tanto, duas damas de aqui serão escolhidas para auxiliá-la.
O anúncio de fato incomodou Miranda, pois sabia que salvar mãe e pai era impossível, neste caso, optou por levar sua mãe e a melhor amiga dos tempos de servidão: Sabrina.
- Señorita, entendo a escolha por Sabrina, mas esta outra serva já está um tanto idosa, já passa dos trinta, não achas melhor...
- Está bem por moir. A experiência é o melhor atributo a uma serva de cozinha.
- Compreendo. Pois bem, vou arrumar os papéis para assinarmos amanhã e lhe informarei a quantia.
Uma vez que tudo fora acertado, Miranda continuou a agir sob esse disfarce, mesmo enquanto trabalhava em sua bombonière, ladeada pela mãe e amiga que não ousavam fazer perguntas para a nova senhora. Com o tempo, um boato foi surgindo na cidade, pessoas estavam desaparecendo misteriosamente, mas a nova loja estava atraindo mais turistas das redondezas do que as notícias poderiam espantar.
A cada mês, um homem e uma mulher, sempre nesta ordem, sumiam para sempre e não se encontravam vestígios. O homem geralmente era um servo, e a mulher, uma dama. Miranda sabia que esse era o pretexto que precisava e finalmente contou toda a verdade às duas servas que choraram de felicidade.
Quando os incidentes completaram o terceiro mês, os três voltaram à propriedade dos Alcantara sob o pretexto de visitar os outros servos, devido à preocupação de que algum deles tivesse sumido. Neste momento, Miranda deveria distrair o latifundiário, enquanto as outras duas armavam um plano de fuga com seu pai.
Aquele quarto mês estava tranqüilo, ainda não havia nenhuma vitima, o Sr. Alcantara comentava alegremente, enquanto conduzia Miranda para os fundos da casa, lugar onde ela nunca fora antes. Os dois entraram em um cômodo grande, poderia funcionar como um salão de baile, afinal, o pé direito alto ali proporcionava uma acústica fantástica, mas não tinha janelas e as portas pareciam bem vedadas, montagem típica para abafar o som.
Quando o anfitrião fechou as portas atrás de si e ambos ficaram no breu que durou até o momento em que ele acendeu algumas velas, um cheiro estranho começou a incomodar as narinas da moça. Ele a conduziu para o centro do salão e começou a falar:
- Sabe o que eu mais detesto? Pessoas que acham que dinheiro e nobreza se conquistam com o esforço. Contradizem a lei de Deus, afinal, já nascemos nobres e ricos, ou pobres e servis.
A moça se restringiu a ficar calada.
- Você sabia que todas as damas que morreram eram viúvas-negras? Elas se casaram com seus senhores, neste frenesi de miscigenação que está acontecendo, conquistaram seu dinheiro e suas terras e depois os mataram sem o menor remorso. Sabias disto?
A rudeza do homem começara a incomodá-la, mas ela preferiu ficar resoluta por mais um tempo. Um homem entrou pela porta imediatamente oposta e a fechou, caminhou até a luz das velas, de modo que ela podia encarar os dois homens, mas seu rosto estava obscurecido pela sala.
- Me chamaste, señor?
- Si, mira esta chica. Reconhece?
Miranda quase fugiu da luz, como um demônio, aquele homem que estava à sua frente era seu pai, ela estava encrencada como nunca.
- Si, señor, é a señorita Juvou.
O latifundiário desferiu uma bofetada contra o rosto do homem que cambaleou e caiu de fraqueza.
- Não brinque comigo, seu torpe!
Algo reluziu na direção de Ramirez, mas nada era visível naquela penumbra, até que ele desequilibrou o candelabro e derrubou uma vela, que fez algo viscoso no chão pegar fogo. Era algum tipo de óleo fétido, as chamas percorriam-no como uma trilha e caminhavam em direção a alguma coisa empilhada. Os olhos dos espectadores se encheram de terror, o do anfitrião se encheu de ódio, e aqueles seis pares de olhos vislumbravam seis corpos sem vida, lambidos pelas chamas que agora estavam frenéticas e fediam como nunca.
- Assassino!
- Fugitiva!
- Filha!
Os três gritaram, a faca na mão de Ramirez se precipitou para Miranda, mas o pai não deixaria que algo acontecesse à sua única filha. Com um movimento rápido, aproveitou que já estava no chão e bateu o calcanhar com toda força na barriga do assassino. O frágil e pomposo nobre foi atirado para trás com violência e caiu no chão, coincidentemente sobre uma porção daquele óleo que escorrera dos corpos. Esta foi a deixa para Miranda arremessar uma das velas caídas em sua direção e vê-lo fritar como o porco ganancioso que era.
Naquela noite, quatro pessoas saíram da cidade e a nova Bonbonière fora abandonada. Os rumores diziam que aqueles doces eram feitos de gente, por isso os desaparecimentos cessaram. Mas, uma vez na França, falácias provincianas como esta jamais iriam vingar.

2 de fev. de 2009

Sicut erat in principio

- Estás errado... Messias.
O ser andrógeno, alto, de olhos azuis e cabelos doirados fitava aquele homem rude, como um nômade do deserto. O ser alado demonstrava uma sombra de ruga em sua testa, denotando preocupação e, ao mesmo tempo, certo rancor, o que transfigurava sua tez perfeitamente impecável. Enquanto isso, o homem continuava sentado em seu trono, impassível, mas com a serenidade eterna que lhe cabia.
- Tu, que és luz e filho dela, que diz amar mais a Ele do que eu poderia, fazes tal proposta repugnante? Como podes?
- Eu O amo, não digo apenas, de forma leviana. Mas é justamente meu amor que me move a querer fazê-lo enxergar.
- Então acusas o Pai de ser cego perante sua cria?
- Eu não acuso, apenas... Ora... É inútil. Retiro-me, com sua licença.
- Não deixarei que vá, até que desista dessa idéia tola.
- Então eu, pela primeira vez, devo desobedecer, em nome de minhas convicções e ao arbítrio que Ele me concedeu.
As belas asas, que emitiam um brilho imaculado, abriram sobre as nuvens, sem gerar sombra, pois seu brilho ofuscava quaisquer trevas, e então a criatura voou, atravessou montanhas, se dirigiu à um monte distante, onde encontrou várias outras semelhantes, mas nunca tão belas e nem tão perfeitas.
- Bem vindo, senhor. Como foi a recepção da notícia?
- Ele não colaborará. Está cego por dividir seu amor com os mortais. Acho que ele seria capaz de amá-los mais que ao Pai.
- Isso é... grave, senhor!
- Eu sei, mas é por isso mesmo que atacaremos hoje, vamos tomar o controle e mostrar a Ele o quanto estava enganado e tudo será como antes.
Um brilho de orgulho tilintava nos olhos azuis, tão profundamente azuis que poderia se perder e se afogar, mas eram estes olhos que não podiam ver as coisas mais banais, como o erro iminente.
Alçaram vôo, todos juntos. Toda a falange da luz, emitindo brilho no céu paradisíaco, tal que os mortais encararam aquela noite como a primeira chuva de estrelas, que cobriram o céu e nunca mais voltaram. Quando a falange invadiu a cidade prateada, galgando até os limites do Éden, livremente, pois não havia inimigos ali, apenas os velhos conhecidos e companheiros, encontrou um único obstáculo: aquele homem, que parecia não pertencer aos reinos celestes, o homem de feições mezzo-orientais, jazido na porta do jardim eterno, portando uma espada embainhada, mas nenhuma armadura.
- Em nome do Pai, peço que parem.
- Em nome do bem, peço que vá – o anjo respondeu resoluto.
- Em nome Dele, peço que não cometam uma loucura.
- Em nome do amor, peço que compreenda.
- Em nome de Deus, peço que não me forcem a fazer o que devo.
- Em nome de nosso Pai Celeste, suplico para que pare de usar seu voto em vão. Não desistiremos.
- Então não tenho alternativa.
Ao dizer isso, a espada fora desembainhada, mesmo no topo da cidadela prateada, onde a luz nunca cessava, às portas do Éden, onde a beleza perdura, eterna, tudo se ofuscava. O cabo cravejado de amor, paz e esperança, a lâmina, banhada da bênção maior, emanava o brilho de mil sóis, toda a força Dele, todo o bem do mundo, o mal pereceria sob aquele peso implacável, não importa sob que forma se escondesse.
- Lúcifer, renda-se.
- Não, jamais permitirei que meu amor seja derrotado, de modo que o Pai continue sob efeito dos ludíbrios traiçoeiros de sua cria.
Nesse instante, todas as demais falanges surgiram, imponentes. Aguardavam o comando do homem, do Messias, mas ele só estava parado segurando a luz, o sol, o brilho que ofuscava todos os anjos, como se estes fossem meros humanos sem brio.
Arcanjos Miguel e Gabriel se aproximaram e ladearam seu comandante e, por sua vez, sacaram suas próprias espadas, feitas de fogo celeste, entalhadas na pureza e na beleza, feita dos segredos de paz e das juras de bondade.
A tensão foi quebrada por um grito de Lúcifer:
- Esta espada jamais me ferirá, pois em mim o mal não habita, apenas o amor!
O ataque foi fulminante, durou meros segundos que pareceram eternos. Correndo em direção à lâmina, o anjo de luz encontrou sua rival. Uma luz ainda maior, apesar de não feri-lo, açoitou-o para baixo e as nuvens cederam sob o peso dos mundos, a força arrebatadora do arremesso. Todos os demais se renderam imediatamente, mas o estrago já estava feito.
Enquanto caía e se desfigurava, as asas sendo dilaceradas pela pressão do vento, os olhos, lábios e cabelos chamuscados pelo fogo do atrito, o belo rosto danificado pelo impacto com a terra firme, os ossos aleijados e deformados, mas uma lágrima escapara e se perdera, eternamente, no percurso. Ele sabia que estava errado, e mesmo a eternidade não compensaria o seu remorso.
A cratera gerada pela queda fora gigantesca. Os céus jamais viram uma rebelião em toda sua eternidade, mas o castigo fora demasiado grande para haver outras. Os demais anjos rebeldes tiveram suas asas arrancadas e foram arremessados ao abismo de Lúcifer. Claro, não com a mesma força, então, apesar da dor causada pela perda das asas – as feridas eram terríveis e pendiam sangue dourado – não foram tão deformados quanto seu irmão.
A falange caída mendigou a existência e criou, ali, seu próprio simulacro de paraíso, com uma realidade tão distorcida pelo sofrimento, que ficou conhecida como Inferno, e lá acolhiam todas as almas expulsas do Éden.
No centro do buraco, mesmo hoje, milhares de anos após o episódio conhecido como A Queda, o lugar mais escuro da cratera ainda é iluminado por uma pálida chama fantasmagórica, emanada por uma criatura distorcida e fadada a se lamentar eternamente. Enquanto chora, rumina a traição com suas três bocarras. Quando um outro caído vem lhe propor a ambiciosa retomada do céu, ele simplesmente responde:
- Os errados somos nós. Se quiserdes tomar o que não lhe convém, entrai em uma de minhas bocas, que hei de ruminá-lo até que se desfaça, se recomponha, sofra e se desfaça novamente, para que possa sentir como é a dor dos que foram traídos. Pois apenas um traidor de si mesmo pode entender o que eu sinto dos dois lados da angústia.
Dizem, nas lendas humanas, que quando os viajantes passam pela região do Mediterrâneo, onde o mar invade a terra, clamando seus sulcos e aliviando sua dor, é possível ouvir uma prece ao cair da noite. Uma voz triste, porém extremamente bela, eternamente a repetir:
- Agnus dei qui tollit peccata mundi miserere nobis, dona nobis pacem. Ecce qui fiat misericordie, benedictus in nomine domine, miserere nobis peccatoribus. Pater noster, dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostri. Adveniat regnum tuum et sed libera nos a malo. Amen.

A Guerra Dentro De Alguém

A chuva de fogo mostrava os valentes e os covardes. Ele podia ouvir os barulhos das armas de fogo. Metralhadoras atirando em todas as direções. E ele continuava correndo, usando árvores para se proteger dos projéteis disparados pelas metralhadoras inimigas. A tropa da qual ele fazia parte não conhecia muito bem o terreno. Mas isso não interessava para eles. Alguns corriam com granadas nas mãos e as arremessavam na direção dos inimigos, causando uma explosão com barulho tão alto e grave que chegava a abafar o barulho das metralhadoras em funcionamento. Mas esse funcionamento não para.  Então segundos depois já era possivel novamente ouvir os confusos barulhos das armas de fogo.

A missão era simples: invadir e matar. Sempre assim em todas as missões. Ele via imagens de seus companheiros morrendo na sua frente, enquanto corria e matava soldados do exército inimigo. Já não sabia bem o que era real e o que não era, o que era presente e o que era passado. Foram anos e anos de derramamento de sangue, causados por ele e a ele, por seus companheiros e tambem por seus inimigos. Anos suficientes para fazer uma pessoa não saber mais se é um veterano de guerra ou um doido varrido.

Ele correu, atirou com armas de fogo, lançou granadas, viu seus amigos e companheiros morrerem. E seus inimigos fizeram o mesmo. Quem foge primeiro é considerado derrotado, e quem sobrevive no campo de batalha é declarado vencedor. Mas no fim todos perdem. Muitos jovens tem sua vida retirada pelas mãos de pessoas iguais a eles, que são obrigadas a irem ao campo de batalha. Matar para viver. 

Não sabia o que era real e o que não era. Ouvia pessoas gritando. E chorando. Via cenas de seus companheiros morrendo. Assim eram seus dias depois de considerado veterano de guerra. Assim eram seus dias, ainda depois de anos internado em um hospital psiquiátrico. Inocência trocada por inferno psicótico. A guerra estava dentro de sua cabeça, para sempre.